Mais amor e menos confiança.
João Sayad
Somos todos prisioneiros de algum paradigma. Basta conversar com o amigo marxiano, com o psicanalista ou com o homem religioso. Sempre encontrará a verdade profetizada nos textos de sua predileção—Marx, Freud ou as Escrituras. São clássicos pois sempre demandam e oferecem novas leituras.
Sou prisioneiro de René Girard—critico literário, antropólogo e filósofo. Girard é católico. Começou na literatura. E daí passou para a antropologia. Francês, desenvolveu carreira de scholar nos Estados Unidos. É pouco conhecido, do meu ponto de vista de leitor fascinado. E tem poucos prisioneiros engaiolados no paradigma que propõe. Citei-o para o Professor Luis Dantas que passou a admirá-lo como eu. Assim acredito que não estava muito errado ao ser fascinado por suas idéias. E por isto, escrevo este breve artigo em homenagem ao amigo Dantas.
A proposição básica de Girard é simples. Construímos a subjetividade- nossos desejos- através do mimetismo. Desejamos ser como as pessoas que admiramos ou amamos. Édipo é apaixonado pela mãe, não pelas razões apontadas por Freud. Mas porque a mãe é a mulher de um homem admirável, o pai.
Desejos são pulsões que se satisfazem imediatamente—uma ausência, tensão, satisfação seguida de tranqüilidade ou depressão. O desejo insaciável que permanece é o desejo pelo desejo do outro.
Desejo a mãe enquanto ela for mulher do pai. Se fosse rejeitada pelo pai ou se o desejo não fosse inacessível pela interdição ao incesto, não seria mais objeto de desejo. Sobra apenas o desejo pelo desejo do outro que é admirado e amado. Desejo insaciável.
Girard cita o capítulo inicial do Vermelho e o Negro de Stendhal. O pai de Julien Sorel passeia com o prefeito e deixa escapar que o filho será contratado como professor por outra pessoa, amiga do prefeito. O prefeito imediatamente contrata Julien Sorel como preceptor da filha. Sem esta “mentira de negociante” , Julien não seria contratado.
Este desejo pelo desejo do outro, esta vontade de possuir o que o outro deseja enquanto o outro a deseja foi chamado de rivalidade mimética. Não poderia ser chamada de inveja pois a inveja, que dizem ser verde, se refere ao desejo de destruir ou frustrar o desejo do outro. Por isto, rivalidade mimética.
A rivalidade mimética é uma estrutura de desejo que se apóia em três pólos—a coisa desejada, o outro que a deseja e o obstáculo entre o desejo e a coisa desejada.
Tem duas soluções – a violência. Ou o redirecionamento do desejo para uma terceira coisa “ excluída” – que seja objeto do meu desejo e do desejo do outro mas que não pertença a ninguém.
Girard “descobriu” o triangulo do desejo na literatura. E mostrou que quanto mais próximos os objetos do desejo ou os vértices do triangulo, maior a rivalidade mimética e a violência que acarreta. Madame de Bovary deseja o “glamour” da aristocracia e é um caso de violência que termina em suicídio e morte. Don Quixote deseja algo distante, a glória da cavalaria do passado e o amor cortesão.
Como antropólogo, argumentou que os ritos de violência sacrificial—o sacrifício de um escravo ou de um animal—tinham a função de “ extrair” a violência da sociedade e dirigi-la para um terceiro excluído—o bode expiatório. O rito sacrificial é o rito necessário para manter a ordem em qualquer comunidade.
Os ritos de violência sacrificial tem em equilíbrio instável. Se o objeto do sacrifício for um animal velho e de pouco significado como alimento ou animal de trabalho—o rito sacrificial extrairá pouca violência da comunidade que permanecerá conflituosa e violenta. Se o objeto do sacrifício for a princesa linda, filha do chefe da clã, rei ou cacique, a violência pode ser excessiva. E violência é contagiosa—a comunidade se destruirá em conflito e violência. O bode expiatório retira a violência do seio da comunidade e a dirige para este terceiro excluído. Que sempre oscila entre o excesso—contaminando a comunidade com o rito sacrificial Ou insuficiente, incapaz de controlar a violência da comunidade.
São três os princípios que orientam a visão de Girard —a rivalidade é tanto maior quanto mais próximos os vértices do triangulo. Quanto maior a proximidade, maior a rivalidade e maior a violência que a soluciona. Em segundo lugar, a violência é contagiosa, como podemos ver nos conflitos entre torcidas de futebol ou nas guerras entre nações que sempre correm o risco de se alastrar. Em terceiro lugar, o bode expiatório é o o objeto necessário para controlar a violência entre os humanos.
A visão de Girard sobre a construção da subjetividade a partir da rivalidade mimética pode ser aplicada em várias questões.
Na religião , Cristo e sua paixão representam esta solução antropológica. Cristo foi o único dos profetas judeus que anunciou e aceitou a morte como necessária para extrair a violência do mundo. “ Eu sou o Cordeiro de Deus” que vim salvar o mundo pelo sacrifício da minha vida. A missa e a Eucaristia representam o rito de sacrifício que salva o mundo da própria violência.
O rei é muitas vezes o bode expiatório que escapou do sacrifício. Por isto, reis são enterrados sob pedras, como nas pirâmides e nas covas do mundo ocidental. São vitimas arqueológicas sacrificadas por apedrejamento.
O governo, por outro lado, é sempre bode expiatório. Reis são coroados para serem degolados ou sacrificados para “ resolver” a violência decorrente da rivalidade mimética.
A aplicação da visão girardiana pode ser levada a casos triviais. Nunca foi possível a aliança entre sociais democratas e comunistas no século XX PT e PSDB são partidos rivais e muito próximos.. É mais provável uma aliança entre o PT e o PP de Paulo Maluf do que entre PT e PSDB.
O homem de relações públicas que seguisse a visão de Girard obedeceria regras muito claras. A rivalidade é maior com os mais próximos que admiramos (e por isto mesmo, também odiamos) e com quem convivemos.
Ao visitar a empresa familiar dirigida pelo filho do fundador—nunca perguntaria pelo seu pai nem pelo seu irmão.São vértices de conflito insuperável. Ao cumprimentar o Príncipe Charles não pergunte como vai a Rainha Elizabeth . Ao conversar com o Presidente da República não pergunte pelo segundo homem forte do governo ou por aquele que o ajudou a se eleger. Veja o conflito entre Figueiredo e Geisel, para citar um caso que já é histórico e pode ser mencionado sem melindres.
Na área de relações internacionais, cada pais tem relações cooperação e aliança com os vizinhos dos seus vizinhos. O Brasil é rival da Argentina e tem tradição de votar junto e cooperar com o Chile. França e Alemanha e duas guerras mundiais são outro bom exemplo. São Paulo não existiria sem o Rio—São Paulo é a negação do Rio. Uberaba não existiria sem Uberlândia, nem Tatuí sem Tietê.
Economistas imaginam que consumidores autônomos estão dispostos a trocar bens e trabalho de acordo com desejos bem comportados. Para Girard, a troca é impossível—se o vendedor está disposto a vender, o comprador não quer mais a mercadoria da transação. As trocas só podem se efetuar através de um bem excluído—que não pertence a ninguém e é desejado por todos—o dinheiro. Assim, diferentemente do que dizem os economistas, não foram as trocas que deram origem ao dinheiro, mas o dinheiro que deu origem e permitiu as trocas.
Seres humanos oscilam entre o amor e o ódio que o acompanha. Nossa sina é capturar o desejo dos que amamos muito. A solução? Um bode expiatório. Um desejo compartilhado por uma terceira coisa. E manter uma certa distância.
Se entendi bem os fascinantes textos de René Girard, o melhor dos mundos que podemos sonhar é um mundo que aspira a coisas transcendentais, Deus e a vida eterna, terceiros excluídos.
Ou o mundo do dinheiro onde todos os conflitos podem
ser resolvidos pela resposta a pergunta—“quanto é? “.
Ou um mundo de namorados. De pessoas que se admiram, mas mantem distância protocolar que mantenha a rivalidade mimética a nível suportável. Um mundo de mais amor e menos confiança.
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